As normativas urbanísticas, em conjunto a outros tipos de medidas e políticas com forte incidência espacial postas em prática na última ditadura cívico militar argentina entre os anos 1976 e 1983, tanto na cidade como na província de Buenos Aires, conjugaram-se para exercer um papel essencial na configuração metropolitana, deixando uma marca territorial característica que se manifesta imediatamente na tomada do governo por parte das Forças Armadas e se aprofunda ao final da década de 1970, quando os marcos normativos anteriormente sancionados começam a evidenciar efeitos mais profundos.
As leis da ditadura incidiram no território e continuam definindo muitas das características urbanas metropolitanas da atualidade. Em termos gerais, produziram uma reestruturação do espaço que resultou em perduráveis consequências sobre a fisionomia e a estratificação social da cidade mediante o recorte progressivo e exponencial dos direitos dos setores populares ao uso e disposição do espaço urbano. Ou seja, enquanto as "villas" eram erradicadas pela força e os pobres eram confinados em setores periféricos, pouco acessíveis e sem serviços urbanos, por outro lado observava-se a concentração relativa dos setores de maiores rendimentos nas áreas mais bem localizadas e de melhores acessibilidades.
Além das consequências imediatas das medidas tomadas na ditadura, existem outras tantas que podem ser observadas ao longo do tempo e que, após 40 anos, seguem influenciando na construção do espaço. Ambas as situações são muito importantes. Não somente os marcos normativos permitiram moldar no território os objetivos de ordem e controle social, mas, um ponto significativo é o que Schindel denomina como arquitetura autoritária, referenciando-se a um modo de construção de espaços e edifícios públicos que expressava e buscava o “controle e trânsito rápido, em detrimento de espaços de encontro e de ação coletiva”.
Os marcos normativos e as políticas urbanas resultaram não somente na exclusão dos grupos de menores recursos do acesso ao solo urbano e à cidade nesse período mas que, entre outras coisas, mudaram a morfologia da periferia como fundadores de uma territorialização excludente e periférica dos setores populares, cujo padrão se aprofundou nos anos noventa e continua com características semelhantes a este dia.
Oscar Oszlak identifica quatro tipos de políticas urbanas que foram particularmente significativas na dinâmica da auto-estruturação de toda a área metropolitana de Buenos Aires: a) as transformações no mercado habitacional; b) a eliminação das "villas de emergencia"; c) as desapropriações para construção e recuperação de "espaços verdes" (cinturões ecológicos); e d) A relocalização industrial. As políticas surgidas na ditadura, então, ofereceram um discurso atrasado: ordenar o espaço de maneira tal que a fragmentação e polarização do território representasse uma forma - das mais radicais e efetivas - para controlar a população, limitando o acesso aos diferentes setores da cidade, com acesso desigual ao uso e fruição do espaço urbano.
Acesso desigual ao espaço
Nesta nova configuração urbana favorecida por mudanças tecnológicas, o afluxo de capitais, o agravamento de problemas de violência e a cultura pós-moderna, tanto o centro como a periferia sofrem novas alterações. Nota-se que os setores de alta renda, que habitavam parte da primeira coroa, ou retornam às torres de habitação de luxo no centro ou distanciam-se cada vez mais para viver em clubes de campo ("countries") ou em condomínios fechados. Estes processos resultaram em uma periferia polarizada e com fortes rupturas sócio-espaciais, ambas ocupadas pelos pobres e pelos ricos. Assim, setores de alta renda tentam isolar-se da classes média e baixa, mas, embora bloqueado atrás de muros e cercas, eles compartilham as mesmas áreas da cidade.
Neste cenário redimensionou-se a ideia de periferia caracterizada essencialmente como a de um espaço que se localizava nas imediações dos corredores ferroviárias ou rodovias. E nesta dinâmica, as "boas" áreas - aquelas que correspondem às áreas tradicionais consolidadas tendiam a melhorar as suas qualidades urbanas, enquanto que as "maus" - as consideradas periféricas - também melhoraram, mas apenas em estreita proximidade com os novos eixos rodoviários, enquanto os setores populares que ali residiam eram deslocados.
Este processo, denominado por Horacio Torres como suburbanização das elites, foi enquadrado nesses fenômenos globais mencionados. Pode definir-se como o assentamento residencial dos setores de altas rendas da população na periferia urbana sob a forma generalizada de "condomínios fechados" para as quais foram conquistando grandes terrenos localizados em áreas acessíveis devido à construção de rodovias. Enquanto isso, os setores mais pobres sofriam um novo deslocamento, com desigual disputa de terras que, mais uma vez, produziu mudanças significativas no perfil da periferia e afetou seu modo de acesso a bens e serviços, condições ambientais, suas realidades de trabalho.
A principal característica deste cenário urbano é a proeminência do norte sobre o sul e do centro sobre a periferia, enquanto uma forte predominância dos principais eixos principais sobre os espaços intersticiais é observada. No entanto, a tendência indica que os mercados estão se espalhando cada vez mais também para cobrir os setores médios superiores.
A partir dessa situação, estendida primeiro para a zona norte, foram-se replicando condições similares ao sul e ao oeste metropolitanos, onde os setores populares, apesar de já terem consolidado sua habitação e infraestrutura, continuam lutando para melhorar suas condições de vida e, por sua vez, disputando os espaços de reprodução social que haviam conseguido habitar. Dessa maneira os setores populares, as classes baixas, encontram-se em um cenário que pode remeter-se aos últimos vinte e cinco anos e no qual, assim como há quarenta anos, encontram-se nas posições e nas áreas mais desfavoráveis da cidade e da sociedade. Isso se deve a que, ainda que as problemáticas estruturais socioeconômicas e territoriais puderam mudar e até atenuarem-se, elas sempre persistiram.
Ordem espacial, controle social
Através de uma análise das políticas urbanas implementadas pela última ditadura cívico militar argentina (1976-1983), destaca-se a importância que tiveram para a construção da periferia de Buenos Aires. Identificamos uma série de elementos ordenadores do espaço que surgem a partir dessas políticas de um modo mais evidente e perceptível, mas que por sua gênese pode ser rastreado desde períodos anteriores e que ainda hoje perduram no tempo alimentadas pelas diversas sinergias que foram moldadas no território ao longo da história.
Atualmente nos encontramos em um novo marco possível para o desenvolvimento metropolitano a partir da sanção da lei Provincial 14.449 de Acesso Justo ao Habitat. Enquanto ela não foi capaz de deslocar a antiga Lei 8.912, veio a complementar a resolver algumas dívidas com os setores populares nascidos em 1977 e que ainda não encontravam benefícios em termos normativos. Esta lei, aprovada no final de 2012, destaca-se por reconhecer a cidade "auto-construída" e estabelecer objetivos de equidade no desenvolvimento urbano. Institui processos, define autoridades de aplicação e estabelece instrumentos para intervir em favor de setores desfavorecidos, que através de formas de organização popular são reconhecidos como atores fundamentais na construção da cidade.
Assim como em meados dos anos setenta uma série de leis atuaram em detrimento dos setores populares para o acesso à cidade e através de uma série de marcas no território contribuíram para a fragmentação social e urbana, esta lei provincial pode ser um primeiro passo para lançar as bases de um marco normativo anti-cíclico que define uma ruptura nas políticas urbanas que vêm ocorrendo nos últimos quarenta anos e reconhece a função social da propriedade, o direito à cidade e acesso legítimo a habitação digna para todos os cidadãos.
Consiste de um território que responde a uma ordem espacial específico e definida para exercer o controle social das práticas coletivas. Consequentemente, a periferia é construída a partir de uma inter-relação direta entre as marcas urbanas decorrentes das políticas implementadas pelo último governo militar que são orientadas para a organização de espaço e de controlo dos movimentos sociais. um discurso que atravessa o tempo e o espaço, que se refere à demarcação de lugares e classes sociais e também constrói uma dimensão simbólica, ordena as correlações de força, controla as atividades e estabelece distâncias sociais, atribuindo um lugar no espaço é apresentada cada grupo.
Podemos falar assim de uma periferia de uma unidade em termos estruturais, mas cuja construção metropolitana pode ser definida como resultado da simples adição dos elementos. Pelo contrário, para poder conhecer suas características, construí-la como um objeto de estudo e como um assunto de política pública, é necessário às relações atentar para as relações e processos que permitem unir esses elementos, recuperando a história, identidade, memória e conhecimento coletivo existentes reconhecendo os marcos que deixaram cicatrizes - e algumas feridas ainda abertas - em sua estrutura e que permita reconstruir as partes no sentido de projetar um espaço metropolitano integrador, inclusive e abrangente.
NOTA: Este material constitui uma breve síntese do documento final intitulado: “Cicatrices urbanas post-dictadura: Orden espacial y control social en la periferia de Buenos Aires”, elaborado pelos autores no âmbito do Instituto del Conurbano de la Universidad Nacional de General Sarmiento (Argentina), e contou com a colaboração da arquiteta Laura Corbalan Vieiro.